Fetiches e Classe Social: Desejos que Revelam Nossa Sociedade

Você já parou para pensar se o que desperta nosso desejo pode ter relação com a nossa condição social? Em conversas sinceras e relatos compartilhados em redes sociais, surgem perguntas que instigam: por que certos fetiches parecem mais comuns entre pessoas de classes mais altas? Será que dinheiro, tempo ou acesso à informação realmente influenciam o tipo de fantasia que cultivamos? Ao mergulhar nesse tema, percebemos que o universo dos fetiches é muito mais do que uma questão individual – ele está profundamente entrelaçado com cultura, poder, desigualdade e até com o modo como nos enxergamos e somos vistos pela sociedade.

O que é fetichismo e como ele se manifesta

Fetichismo é um conceito que viaja entre o universo da sexualidade e a teoria social. No campo íntimo, falamos de desejos voltados a objetos, partes do corpo ou situações específicas, que fogem do tradicional e podem variar imensamente de pessoa para pessoa. Alguém pode, por exemplo, sentir excitação ao tocar ou ver pés, axilas ou roupas íntimas usadas – práticas que, dependendo do contexto, já foram tabu, moda ou simplesmente invisíveis.

Mas o fetichismo também é um tema central para quem analisa as engrenagens da sociedade. Nas palavras de Marx, o fetiche é uma espécie de “encantamento” pelo qual objetos e relações ganham um valor que vai além de sua utilidade prática, tornando-se mercadorias dotadas de poder próprio. Lukács, estudioso do pensamento marxista, amplia essa ideia ao sugerir que, em sociedades capitalistas, não apenas os objetos, mas as pessoas e suas identidades também podem ser transformadas em mercadorias, moldadas pelo desejo e pela lógica do consumo1.

Ao longo da história, as práticas fetichistas sempre existiram, atravessando eras e culturas. O que muda, no entanto, é a forma como esses desejos são percebidos, aceitos ou reprimidos. Em alguns períodos, certos fetiches são vistos como excentricidade ou doença; em outros, recebem status de tendência ou até se transformam em produtos de consumo. Isso evidencia como nossos desejos são influenciados, em parte, pelo ambiente social em que estamos inseridos.

Classe social, acesso e autoconhecimento

É comum encontrar relatos em redes sociais e fóruns de discussão onde pessoas observam que indivíduos com maior poder aquisitivo parecem ter fetiches “mais diferentes” ou exóticos. Em experiências compartilhadas, algumas pessoas relatam que parceiros com situação financeira confortável demonstraram interesses pouco convencionais – adoração por pés, axilas, ou até desejos por roupas íntimas usadas. Já em outros círculos, essas práticas parecem menos frequentes ou mesmo invisíveis.

O que explicaria essa diferença? Especialistas em sexualidade e psicologia social sugerem que o acesso a recursos impacta diretamente a possibilidade de experimentar e reconhecer desejos. Quem dispõe de mais tempo livre, privacidade e dinheiro pode buscar informações, frequentar espaços seguros e consumir conteúdos que facilitam o autoconhecimento. Isso inclui desde a leitura de livros, participação em eventos temáticos, até a aquisição de produtos e serviços eróticos personalizados.

Contudo, é importante ressaltar que fetiches não são privilégio de uma classe social. O que muda é, sobretudo, a liberdade para vivenciá-los abertamente e verbalizá-los sem medo de estigma. Muitas vezes, a repressão de desejos em classes menos favorecidas está ligada à falta de privacidade, ao medo do julgamento social e à escassez de espaços seguros para experimentação. Como ressalta o artigo “A vingança do fetiche” publicado na Scielo, a educação e a cultura desempenham papel central na formação da consciência sexual e na disposição para romper com padrões impostos2.

O papel da indústria cultural e da mercantilização do desejo

Vivemos em uma era em que a indústria cultural não só transforma experiências em produtos, como também cria tendências e molda o que é considerado “desejável”. O fetiche, nesse cenário, passa a ser não apenas expressão íntima, mas também mercadoria. Plataformas digitais, conteúdos adultos personalizados e até aplicativos de relacionamento contribuem para tornar práticas antes veladas em objetos de consumo massivo.

A mercantilização do desejo se expressa em fenômenos como o “sugar dating”, onde relações de poder e dinheiro se misturam com fantasia e sexualidade, ou nos serviços de dominatrix e acompanhantes especializadas, que oferecem experiências fetichistas sob medida para quem pode pagar. Segundo análise publicada na Scielo, a indústria cultural contribui para a “reificação das consciências”, ou seja, para que as pessoas se vejam e sejam tratadas como objetos de consumo, inclusive em sua sexualidade2.

Esse processo é duplo: ao mesmo tempo em que amplia o acesso à informação e normaliza práticas diversas, também reforça a lógica capitalista de que tudo pode ser comprado – inclusive o prazer e a fantasia. Assim, os desejos individuais deixam de ser apenas expressão de singularidade e passam a ser moldados por expectativas de mercado, tendências midiáticas e padrões de consumo.

Hierarquia, exclusão e vulnerabilidade

Por trás do fascínio e da liberdade que o fetichismo pode representar para alguns, existe uma realidade muito mais dura para outros. Estudos e relatórios internacionais apontam que a pobreza e a exclusão social são fatores que aumentam significativamente a vulnerabilidade de crianças e adolescentes à exploração sexual3. A desigualdade de classe, nesse contexto, não apenas limita o acesso à experimentação saudável dos próprios desejos, mas expõe milhões de pessoas a riscos e violações graves de direitos.

A objetificação de corpos – tema central tanto nos estudos de Marx quanto nas análises contemporâneas sobre sexualidade – manifesta-se de maneira ainda mais cruel quando atravessada pelo racismo estrutural e pelas desigualdades sociais. No Brasil, a lógica eurocêntrica e capitalista faz com que determinados grupos sejam mais frequentemente fetichizados, hiperssexualizados ou explorados, enquanto outros mantêm o controle sobre a narrativa dos próprios desejos4. Mulheres negras, pessoas trans e jovens de periferia, por exemplo, ocupam posições desiguais nesse mercado de desejos – muitas vezes sem autonomia real sobre sua sexualidade.

Especialistas em direitos humanos e sexualidade alertam que é fundamental diferenciar a livre expressão dos fetiches de situações em que há exploração, coerção ou violação de direitos. A linha entre consentimento e abuso, entre o desejo autêntico e a mercantilização forçada, é tênue e atravessada por questões de classe, raça e gênero.

Diálogo, educação e reflexão crítica

Diante dessa trama complexa, uma das recomendações mais importantes de especialistas e órgãos internacionais é promover a educação em direitos sexuais e o debate aberto sobre sexualidade. Isso significa criar espaços seguros para que todas as pessoas, independentemente de sua classe social, possam conhecer e viver seus desejos de forma consciente, respeitosa e protegida.

A educação sexual de qualidade, aliada a políticas públicas que combatam a exploração e promovam a autonomia, é apontada como caminho fundamental para transformar realidades. Como destaca o UNICEF, é urgente investir em campanhas de conscientização, formação de profissionais e mecanismos de denúncia, especialmente nos territórios mais vulneráveis3.

Além disso, é essencial fazer uma leitura crítica do papel da indústria cultural na formação dos nossos desejos. O fetiche não é apenas curiosidade ou tabu: é parte de uma narrativa social, atravessada por valores, preconceitos e disputas de poder. Ao reconhecer essas camadas, podemos construir uma compreensão mais profunda e empática da sexualidade, que vá além do consumo e do espetáculo.

A análise marxista do fetichismo, por exemplo, nos ajuda a enxergar como a mercantilização das relações humanas influencia até mesmo aquilo que consideramos mais íntimo. O desafio é equilibrar o direito ao prazer e à experimentação com o compromisso ético de não transformar pessoas em objetos de consumo – um equilíbrio que só é possível com diálogo, respeito e consciência crítica.

Quando o desejo encontra a sociedade

Pensar sobre fetiches e classe social é um convite a refletir sobre quem somos, o que desejamos e de onde vêm nossas fantasias. Mais do que etiquetas ou listas de práticas, os fetiches contam histórias sobre cultura, poder, desigualdade e pertencimento. Eles nos lembram que nossos desejos não nascem do nada; são moldados por vivências, referências, oportunidades e, muitas vezes, pelas limitações que nos cercam.

Ao perceber que até os desejos mais íntimos são atravessados pela história, pela cultura e pelas estruturas sociais, abrimos espaço para um olhar mais generoso e crítico sobre a sexualidade – nossa e dos outros. E, acima de tudo, reforçamos a importância de garantir que todos tenham o direito de explorar sua sexualidade de forma livre, segura e sem preconceitos, independentemente de sua classe social.

Seja qual for o seu fetiche, que ele possa ser vivido com autenticidade e respeito, em um mundo onde o prazer não seja privilégio de poucos, mas possibilidade de todos.

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